Confronto Democrático
Parte I
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Se compreendermos a produção de subjectividade de maneira adequada, perceberemos que a crítica, desenvolvida apenas no plano da consciência, como a crítica da racionalidade moderna às ideologias, não consegue gerar movimentos de singularização, não consegue resgatar a sensibilidade ética , não é capaz de subverter as utopias alienadas ou desmontar os imaginários sob elas articulados, não é capaz de atingir certas dimensões da subjectividade das pessoas e nem promover as transformações reais que são necessárias para construir uma sociedade justa e livre.
Isto ocorre porque os principais mecanismos dominantes não operam no plano da consciência - em que se pode contrapor conceitos e acções - mas especialmente no plano do inconsciente, gerando desejos e temores em grupos sociais e colectivos. Assim, a crítica conceitual da acção é apenas um dos elementos da subversão do chamado globalitarismo. Ela contudo é impotente para interferir sobre desejos e temores gerados por determinadas actividades. A crítica teórica somente provoca subversões quando é acompanhada de um processo pedagógico capaz de mobilizar paixões e esperanças, desejos e utopias, que tenham em seu núcleo fundamental o desejo de que cada possa viver plenamente a sua liberdade. Somente este desejo mobiliza eticamente a conduta individual na promoção das liberdades públicas e privadas. O desejo da liberdade eticamente exercida de cada um, coloca-se deste modo, não apenas acima dos desejos de apropriação de direitos resultantes das acções publicitárias, mas também acima dos valores das morais pré-conceituosas e do direito capitalista, no qual o crescendo de capitais - mediação material que amplia a liberdade de alguns – se realiza como negação da liberdade da maioria.
A acção transformadora supõe mobilização colectiva, pois cada um de nós, são muitos, uma vez que a nossa subjectividade é perpassada pela subjectividade de muitos outros consubstanciando-se. Desde esse ponto de vista é fundamental a articulação de grupos, movimentos, organizações, pois só assim a subjectividade de cada um pode, colectivamente, reciclar-se de todas essas acções, códigos e lógicas capitalistas que nos atropelam e que nos dominam. A acção transformadora também pode ser uma acção de cada pessoa em particular, desde que essas acções particulares estejam, de algum modo, articuladas às acções colectivas emancipatórias.
Não basta pois ter uma consciência crítica, se os desejos que seduzem as pessoas são criados em jogos na óptica que os restringem somente às realizações particulares de sua vida privada. Há muitas pessoas assim; têm uma consciência crítica bastante desenvolvida sobre os problemas sociais e políticos; pessoas que são capazes de realizar complexas análises de conjuntura, explicitar conceitualmente as contradições da sociedade, etc., mas que não se mobilizam para transformar a dura realidade de contradições em que vive a maioria da população. Isso acontece porque muitos já perderam a esperança de que seja possível transformar alguma coisa, porque seus interpretes afectivos e energéticos foram absorvidos pelo capital: não reagem mais, sucumbiram, consideram-se impotentes e resolvem, então, priorizar a sua utopia pessoal, interesses pessoais, deixando em terceiro plano a realização de uma utopia colectiva e democrática.
Outros, por sua vez, têm um discurso que não corresponde com a prática e nem sequer se dão conta disso, têm um discurso transformador e crítico, mas que permanece autoritário, porque está modelizado pelo próprio sujeito sob a lógica dos grupos hegemónicos e capitalistas. Com efeito, produzir ou reproduzir um discurso não significa assumir uma nova posição colectiva de subversão das macro e micro-políticas autoritárias. Assim, sob o aspecto da subversão do globalitarismo é necessário que as pessoas componham a realização de suas utopias particulares - movida pelo desejo da austeridade na sua liberdade - com a realização de utopias colectivas, em que todos possam viver, o mais plenamente possível, a sua humanidade. Por exemplo, há actores - em diversas instituições - que afirmam no seu discurso crítico, que a gestão tem de ser democrática e participativa. Mas na prática, o que alguns têm de "democrático" são a "ordem" e a "disciplina". Assim, o facto de activistas e missionários se regerem por regimentos, o facto de se ter consciência e coerência próprias é interpretado e considerado como desobediência e indisciplina, sendo portanto, a negação do regime democrático. Cada um impõe, então, uma certa compreensão de democracia de acordo com a sua concepção, com os seus interpretes. Do mesmo modo, várias pessoas assumem um discurso de mudança e transformação, sendo que a sua conduta expressa algo totalmente diferente do que se pode ver e está no discurso, quando interpretadas de outro modo, sob outra consistência.
Assim, considerando-se a práxis nos múltiplos aspectos de subjectividade que a determinam é mister realizar-se uma crítica periódica das utopias pessoais: o que move a pessoa a agir, qual é a sua compreensão de mundo, quais são os objectivos maiores e conjunturais que possui em sua vida e como os pretende realizar.
Outro aspecto importante a ser destacado é considerar como as utopias pessoais se podem articular em utopias colectivas. Movimentos de mulheres, negros, portadores de deficiência, compõem utopias particulares que podem ser articuladas em utopias colectivas, gerais. Isso pode ocorrer por dois caminhos. No primeiro caso, essa passagem se realiza eticamente, pela redescoberta da própria humanidade da pessoa, do seu valor na convivência colectiva. Isto é, quando os interpretes energéticos frente aos excluídos são singularizados, isto é, quando a pessoa sente revolta frente à marginalização do outro, quando ela sente a exclusão do outro como se fosse a sua própria exclusão, quando a violência contra a mulher, a discriminação contra o negro e o portador de deficiências, quando o abandono de crianças são sentidos na nossa carne, na nossa alma, como se fosse uma violência contra nós mesmos. Quando sentimos como se fosse em nós próprios o sofrimento que o outro padece sob um exercício de poder que o oprime e o impede de viver a sua liberdade de modo dignamente humano. Esse interprete energético e afectivo é fundamental, pois sem essa qualidade ética não ocorrerão mudanças estruturais do sistema económico, político e simbólico necessárias à promoção das liberdades públicas e privadas. É necessário pois, resgatar a sensibilidade mutilada frente ao sofrimento de cada pessoa, mulher, negro, criança, portadores de deficiências, enfim, frente a todos os seres humanos que, como tal, devem ser tratados com dignidade e respeito.
No segundo caso, essa composição de utopias pessoais e colectivas, pode-se dar através de um componente político, que é a afirmação de eixos estratégicos de luta como, por exemplo, a redução horária de trabalho sem redução do salário (como forma de gerar emprego e melhorar a distribuição de rendimentos), reforma urbana (articulando movimentos habitacionais, transporte, saúde e outros em torno de um projecto de cidade), cidadania (pois não adianta apenas negativamente lutar contra o preconceito, sendo vital afirmar positivamente o novo relacionamento humano que promova a realização da dignidade da mulher, do negro, de todas as pessoas) e de outros eixos que sejam democraticamente construídos no debate político entre os diversos actores sociais.
Como afirma um filósofo argentino, “cada qual deve pôr-se para si mesmo como valioso e exigir que se respeite a si e aos demais como seres humanos”. O modelo globalitário, contudo, vem submetendo um número cada vez maior de pessoas a relações aviltantes, mesmo para satisfazer as suas próprias necessidades mais elementares. Trata-se, pois, de recuperar interpretes energéticos e afectivos que reafirmem não ter preço a dignidade humana - isto é, que ela não pode ficar à mercê do sistema de trocas no mercado - e que não se pode permitir que ela seja aviltada em qualquer pessoa.
Está na hora de provar, com práticas, que defendemos e somos interpretes incondicionais dos valores que apregoamos, negando tudo o que afaste da realidade a verdade dos conceitos e valores de solidariedade.
Está na hora de afirmarmos esses valores, opondo-nos a ideias desprovidas de realismo, descaracterizadas de sentido prático e oportuno, que contrariam as linhas condutoras de qualquer projecto vanguardista, sempre na defesa dos conceitos de uma sociedade livre, participativa e acima de tudo representativa dos direitos dos cidadãos. Está na hora de sermos parte integrante das decisões no presente, orgulhando-nos do passado e promovendo a ascensão de um futuro de oportunidades.
(continua …….)
João Carlos Soares