domingo, maio 06, 2007

Da Preplexidade às Ilusões Perdidas (...cont)


III Parte

Essa esperança, leva-nos por vezes, nos tempos que correm ao ódio, ao confronto de ideias traduzido fundamentalmente em manifestações de rua, incentivadas pela insegurança, descrédito e insustentabilidade social.
Falar de ódio em democracia, pode até parecer um paradoxo, mas ele acontece na maioria das vezes, alimentado por gente que não reconhece outra fonte de poder que não seja a vontade dos cidadãos livremente expressa nas urnas, que defende as instituições em que se materializa o estado de direito e, no entanto, se insurge quase de imediato, contra aquilo a que chama de igualitarismo e o surto sem freio de reivindicações, quer de bens de consumo, quer de direitos individuais ou de grupo, que a democracia alegadamente originou.
O seu alvo aparente não será tanto a estrutura do poder democrático, mas a sociedade que de forma sonolenta, mas contudo ousada, vai crescendo à sombra dessa mesma estrutura, uma sociedade partidária egocêntrica, onde os cidadãos desinteressados da política, parecem não querer senão aumentar indefinidamente os privilégios, levando o individualismo a extremos que ameaçam a própria existência de uma coisa pública, algo em nome do qual tenderá a tocar nos direitos de cada um, mais tarde ou mais cedo, caso nada em contrário venha a ser feito.
Mas, será realmente o individualismo e a conversão das multidões, a razão do ódio democrático ostentado frequentemente por certas elites em análises sociológicas, ou esse será mais um argumento para justificar uma metamorfose sócio-política, de que a própria democracia não se encontra a salvo.
À primeira vista, dir-se-á que a democracia pouco ou nada tem a ver, na sua acepção, com os estados e as sociedades a que, vulgarmente, e de acordo com os mais apurados critérios de análise política, são chamados de democráticos. Se atentarmos com a devida atenção nos tempos que correm, o poder encontra-se ameaçado, quando não liderado por diversos tipos de elites que se conseguem impor à elite política, distribuindo a sua influência por dois ou três partidos alinhados ao centro e remetendo para a periferia do sistema político, os grupos com propostas mais radicais.
A influência dos agentes económicos na organização política e social de um estado, acessório indispensável perante a complexidade dos assuntos sobre que incidem as decisões, encarrega-se de seleccionar e limitar as propostas aceitáveis.
Em nome do saber e da competência, os representantes do povo encarregam-se de desfazer, com o seu discurso e as suas controvérsias, qualquer ameaça que se perfile ao sistema, ou qualquer princípio do que se considera o verdadeiro político.
Uma tal pressão e exclusão acarreta enormes custos ao sistema democrático, pois cada vez que alguma coisa se decide, afastado dos centros nevrálgicos, ou amalgamado em folgados consensos em que os conflitos inerentes a qualquer multidão se entorpecem, o povo anónimo e sem título ameaça voltar costas àquilo que se julgaria ser de interesse comum, enfraquecendo, pela abstenção, a legitimidade dos governos eleitos e entregando-se, na qualidade de puro consumidor, ao seu interesse privado e egoísta.
Julgar-se-ia, porventura, que tudo se encaminharia para o melhor dos mundos, com a massa inteligente do planeta a governar e o amontoado de anónimos pacificamente entregues às delícias do consumismo, reduzidas que foram as divergências a um espectáculo que a economia encena e comercializa, utilizando-se para isso de um lobby a comunicação social, de que igualmente em devido tempo se apropriou.
Por sua vez, a política, expulsa pelos mecanismos de privatização do que é público, ameaça em permanência regressar pelas frestas deste, através dos elementos que não cabem na amálgama do consenso, nem à mesa da sociedade de consumo, sejam eles desempregados, imigrantes, grupos étnicos e religiosos, ou simplesmente insatisfeitos a quem o sistema não permite alcançarem as regalias e proveitos a que têm ou se julgam com direito. Todos estes grupos incarnam hoje o antigo desafio que desde sempre pôs em causa a ordem vigente e foi, por isso, considerado um excesso. É esse excesso, que as elites imputam à sociedade democrática e, recriminam, tanto mais quanto exprimem a sua impotência para levá-los a aceitar a autoridade do Estado.
De certa forma, poder-se-ia dizer que este tipo de visão das chamadas democracias representativas seria catastrófica e assente em fundamentos apenas ideológicos. A democracia, com efeito, assume-se de há muito unicamente como o menos mau de todos os regimes que se conhecem, o que mistura, desde logo, na sua defesa algum realismo. Contudo, aquilo que se pode depreender desse realismo, é a demonstração pura de que no interior de qualquer sociedade democrática, se desenvolvem constantemente confrontos entre os grupos de poder e os valores de igualdade representados e defendidos por essas mesmas sociedades.
A democracia não se confunde com o conjunto de instituições que estruturam as sociedades que se dizem democráticas, uma vez que estas consubstanciam sempre um risco de cristalização dos status e hierarquias, ou seja, de apropriação privada daquilo que é comum.
A democracia não se confunde tão-pouco com um tipo específico de sociedade, seja a sociedade pretensamente igualitária, onde a conflitualidade e o ódio são apenas recalcados, ou a sociedade de consumo, onde o indivíduo se transforma em mero cliente e abandona a sua condição de cidadão participativo.
A democracia confunde-se com a política e existe em cada um dos actos que alargam a dimensão do político, ou seja, dos actos que resistem à monopolização do poder de decisão sobre o que é comum.
Distante, portanto, de representar uma forma de estado ou um modelo de sociedade, ela define-se prioritariamente como uma dinâmica que vai contra todo o tipo de assalto ao poder por um indivíduo, um grupo, uma casta, uma classe, uma religião, uma minoria ou uma maioria, opondo a todas essas formas de possível usurpação um princípio regulador que é o poder de qualquer um, o poder de todo o mundo e ninguém em particular.

Joao Carlos Soares

Sem comentários: