domingo, novembro 12, 2006

A Consciência da Serpente

A Consciência da Serpente
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Não acredito na falada objectividade política, muito menos na isenção a qualquer preço. Mas acho que em política não se deve agir como um exército desbaratado e sem generais, no total desrespeito pela mais elementar regra de sobrevivência, pois pode ter um preço extremamente elevado e com consequências irreversíveis de muito difícil quantificação.
Numa marcha longa e difícil, ao longo de uma estrada repleta de surpresas e acontecimentos, mais ou menos explicáveis, vão com certeza ser muitos aqueles que sem cerimónia, a troco de ilusões e sonhos, a coberto de promessas, protagonismo e uma capa de ambição desmesurada, em alguns casos muito bem pagas, abandonar esse trilho transformando o seu espaço de opinião numa trincheira ou num balcão de negócios pouco claros.
Para amainar o clima desta minha irritada exposição, vou tentar recorrer a um exercício bíblico: o de imaginar como teria sido a preparação para a expulsão do primeiro casal do paraíso;
O primeiro casal humano teria sido encontrado deambulando em trajes menores. Os dois teriam sido expulsos de lá depois de um desentendimento com “Deus”. O casal contava a mesma história – a de que tinham sido levados a desobedecer a uma determinação divina, por causa da serpente. O réptil, habilidoso como sempre, teria convencido a mulher a comer uma maçã, fruto da árvore do conhecimento.
- Pode alguém por uma atitude tão inofensiva ser punido? perguntava a mulher, diante do olhar preocupado do homem ainda perplexo.
O porta-voz de Deus, explicou que o Senhor estava ocupado analisando as consequências do incidente para o seu projecto celestial e não poderia falar. Mas o porta-voz deixou claro que a Justiça Divina continuará sendo implacável e que os pedidos de amnistia ou mesmo de revisão de pena não serão levados em conta, nem poderão ser alguma vez perdoados, sendo a sua readmissão impossível alguma vez de concretizar.
A serpente não foi encontrada em nenhuma árvore. O advogado do casal vai pedir parecer pericial da maçã e reconstituição do crime. Não se sabe ainda as consequências para o futuro da humanidade. Há informações de que Deus analisa a possibilidade de eleger os golfinhos como os delfins herdeiros do paraíso. O casal de humanos admite que comer o fruto foi uma experiência inesquecível e definitiva e quer formar família.
Já A Voz da Serpente seria assim:
Insegurança de quem se apresenta como o Senhor de todas as coisas mostra a face cruel do “Todo-Poderoso” e deixa casal humano na maior miséria, sem ter onde morar.
O casal de humanos, vive dias de amargura, depois de ter sido posto para fora do paraíso, sem apelação. O autor da violência foi nada mais, nada menos do que Deus, que faz questão de gravar seu nome em letras maiúsculas. O verdadeiro motivo da expulsão foi o temor da concorrência. A mulher desafiou o poder de Deus, provando a maçã, fruto da árvore do conhecimento. Gostou do sabor, ofereceu ao homem que também se entusiasmou.
Quem informou à dupla sobre as vantagens do fruto, injustamente proibido pelo criador do paraíso foi a serpente, que agora corre o risco de ser responsabilizada pelo que o pessoal do céu chama de crime – a coerência, isenção, coluna vertebral correcta e independente. O casal ainda não sabe o que vai fazer e estudam uma proposta do Diabo para assumir cargo importante no Inferno.
Moral da história: impossível agradar a gregos e troianos, mas não é impossível a muitos casais e famílias, por uma questão de respeito e coerência para com aqueles que se mantiveram, e sabe-se bem a que custos, na estrada sinuosa e tortuosa, mantendo alguma equidistância.

João Carlos Soares

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