quarta-feira, novembro 08, 2006

Pensamentos e Veleidades - Continuação

Confronto Democrático
Parte II
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A economia ajuda a formar a nossa visão de mundo, mas não pode constituí-la. Porque as dimensões económicas representam apenas um segmento do que somos. A riqueza explicativa, por outro lado, vem do facto que o poder e a dinâmica de transformação da sociedade se estruturam em torno de interesses económicos. Quem não entende os processos económicos, acaba por não entender coisas tão elementares como porque somos capazes de façanhas extraordinárias como as viagens no espaço, a ida à Lua, mas somos incapazes de minimizar a tragédia de milhões de crianças que morrem anualmente de fome e outras causas absurdas, ou ainda de conter o ritmo de destruição ambiental do planeta.
A compreensão da economia, por sua vez, é apenas parcialmente um processo técnico e só para entendidos. Conjugam-se e articulam-se raízes emocionais, história vivida, meio social e também instrumentos técnicos e visões teóricas. Os processos de elaboração intelectual não flutuam como qualquer espasmo isolado. O que é realmente interessante, não é a caminhada científica em si, e sim como esta caminhada se cruza com os dilemas simples que cada ser humano enfrenta. Che Guevara deixou como testemunho que “um político que não sabe parar para abotoar o sapato a uma criança, não entendeu grande coisa da vida”. No centro mesmo da nossa estranha aventura humana, estão os valores, a nossa fragilidade ou generosidade individual, a nossa capacidade ou impotência em termos de organizar uma sociedade que funcione e que corresponda aos padrões de uma civilidade moderna e perspicaz.
A visão da economia que tentarei apresentar, aparece como a reconstrução de uma biografia. Seria, digamos assim, o retrato de uma vivência, de uma pessoa que nunca teve qualquer apetência por ser economista ou por gostar particularmente de economia, mas que entendeu que sem entender de economia não entenderia as outras coisas, o mundo distante mas não afastado da economia, mas próximo das necessidades humanas.
Fazer um tipo de economia autobiográfica pode parecer um exercício narcisista. Somos todos um pouco propensos a achar que a nossa vida é interessante integrando um sistema onde todos gravitam à nossa volta. A motivação real resulta aqui da convicção de que a economia vivida pode ser mais real do que a economia teórica de uma sociedade hipotética.
Ao mesmo tempo que as razões para a denúncia da fragilidade humana se reforçam, os instrumentos de sua análise fragilizam-se. O caso, seguramente, não é de baixar os braços, mas de repensar a nossa compreensão das dinâmicas. A urgência torna-se premente quando constatamos que milhões de pessoas no mundo estão a organizar-se segundo caminhos novos, com pouco respeito tanto para a visão estadista tradicional, como para as absurdas heranças liberais.
Um ponto de partida útil, é organizar um pouco os grandes eixos de mudança em curso. Estas mudanças, reflectidas em particular na revolução tecnológica, na globalização, na dramática polarização mundial entre ricos e pobres, na urbanização generalizada do planeta, e na transformação das relações e organização do trabalho, colocam-nos constantemente novos desafios.
Cada uma destas tendências traz imbuída uma contradição central. As tecnologias avançam rapidamente enquanto as instituições correspondentes avançam lentamente, e esta mistura é explosiva, pois não conseguimos manobrar de forma responsável as tecnologias de impacto planetário de que dispomos. A economia globaliza-se enquanto os sistemas de governo permanecem com carácter e âmbito nacional, gerando uma perda geral da capacidade governativa.
A distância e as diferenças entre pobres e ricos aumenta dramaticamente, enquanto o planeta encolhe e a urbanização junta os pólos extremos da sociedade, levando a convívios onde o contraditório se torna cada vez menos sustentável, com a permissividade e tolerância policial ao crescendo de violência e insegurança generalizada.
A urbanização deslocou o espaço de gestão do nosso quotidiano para a esfera local, enquanto os sistemas de governo continuam na lógica centralizada da primeira metade do século passado. Finalmente, o mesmo sistema que promove a modernidade técnica gera a exclusão social, transformando o mundo numa imensa maioria de espectadores passivos que começam a cansar-se com as maravilhas que as novas tecnologias entretanto surgidas nos proporcionam, enquanto se perde de vista a solução dos problemas mais elementares, como a capacidade e sustentabilidade familiar.
A conclusão que tiramos deste contraditório, é que a humanidade precisa urgentemente “puxar as rédeas” sobre o seu desenvolvimento, e dotar-se dos instrumentos institucionais capazes de efectivamente capitalizar os avanços científicos para um desenvolvimento mais preocupado com o factor humano.
Há um cansaço geral quanto às prendas ideológicas, que nos prometem de um lado, com estatização e planeamento, a apregoada tranquilidade social, e de outro, com privatização e mão invisível, a prosperidade que transforma os pobres em mais pobres e os ricos em mais ricos. A primeira deu-nos um gigantesco bloqueio burocrático, a segunda leva-nos à mais dramática acumulação de injustiças sociais que a humanidade já conheceu e a um sentimento permanente de insegurança. Aqui não há vencidos nem vencedores. Por enquanto, a vencida é a própria humanidade, somos todos nós. Trata-se de buscar um pragmatismo democrático que nos permita efectivamente enfrentar os problemas.
Um olhar frio para as formas como nos organizamos e somos governados tende a transformar-nos em actores passivos e excessivamente modestos. Não há muitas razões para se soltar foguetes, nem aqui, nem na China, como dizem, mas tampouco na Rússia ou nos Estados Unidos. Estou convencido de que actualmente vivemos num tempo de poucas ou nenhumas certezas, e sim de dúvidas, abertura, tolerância, compreensão. É vital também a abertura de canais de comunicação entre as diversas ciências, entre as diversas instituições, entre os diversos actores sociais organizados. Para dizê-lo de forma marxista, as infra-estruturas estão a transformar-se a um ritmo prodigioso. Nas super estruturas é que nos estamos a atrasar.
Michael Behe, o excelente autor da Caixa preta de Darwin, tem uma linguagem comedida: "Nos seres humanos, diz ele, tendemos a ter uma opinião bastante exaltada de nós mesmos". A modéstia, realmente, não é o nosso forte. Além disso, como indivíduos, temos a forte propensão para nos convencermos de que conhecemos a verdade real, um caminho recto que lamentavelmente os outros, por maldade ou ignorância, teimam em não reconhecer.
Saber e identificar o caminho é óptimo. Permite um olhar confiante para o futuro, e um caminhar que ignore e faça esquecer os sacrifícios. Esta confiança está a ser afectada por transformações profundas que nos deixam perplexos cada dia que passa. Alguns, na insegurança criada, agarram-se cada vez mais a verdades eternas. Outros gritam mais alto slogans antigos, na esperança de serem ouvidos de forma diferente. Façamos o que fizermos não escapamos à necessidade de repensar os caminhos a trilhar.

(Continua .....)

João Carlos Soares

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