sexta-feira, novembro 10, 2006

Pensamentos e Veleidades - Continuação

Confronto Democrático
Parte III
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As economias nacionais, definitivamente centradas na produção industrial, dirigidas por burguesias com um papel depauperado e esgotado na história, deram lugar à nova classe trabalhadora que assumiria o leme mediante a socialização dos meios de produção, transformação essa dependente da protecção e controle do Estado. Uma fria comparação com o mundo que vivemos dá-nos uma dimensão diferente onde as premissas e os parâmetros mudaram radicalmente.
A economia nacional é absorvida pela internacionalização, a indústria perde peso a cada dia que passa, confrontando-se com os novos eixos de actividades, as burguesias, no sentido tradicional de proprietários de meios de produção, vão sendo gradualmente substituídas por tecnocratas racionais e implacáveis, quando não por especuladores completamente desgarrados das realidades triviais de produtores e consumidores desprevenidos.
A classe trabalhadora transformou-se num universo extremamente diversificado no quadro da nova e complexa socialização, e a sua compreensão resiste cada vez mais à simplificação dos meios e métodos tradicionais. A socialização dos meios de produção mudou de rumo, o Estado está à procura de novas funções como moderador, e não mais como substituto e protector, das forças sociais. A mudança é preciso dizê-lo, é qualitativa, com todo o peso que isso tem para as nossas visões teóricas.
Outra vertente poderia consistir na identificação e especialização de cada país na área onde tivesse vantagens comparadas, e no livre fluxo de transferências que o novo quadro comunitário proporciona, na abertura subsequente a um mercado de trabalho extremamente exigente e competitivo.
Comparativamente o que resta, apesar de ser contabilizado como menos de 15% da população mundial, usufrui de um Pib que é só 78% do Pib mundial. Significa isto, que a rentabilidade per capita entre países ricos e países pobres, caminha desenfreadamente para o empobrecimento dos países menos desenvolvidos, se nada for feito para o evitar.
Vantagens económicas comparadas só podem existir se o poder político e económico dos países intervenientes for minimamente comparável. As vantagens relativas que determinados países têm, são selectivamente absorvidas por grandes grupos internacionais que distribuem o seu processo produtivo transferindo o peso atribuído à mão de obra para países asiáticos e subdesenvolvidos, onde o valor da mão de obra é considerado ridículo se comparado com as condições mínimas exigidas para uma digna e justa retribuição. Para que haja vantagens comparativas do país, é preciso que os espaços económicos sejam constituídos por países.
A lógica aplicada ao desenvolvimento micro-económico não vai muito mais longe. A ideia era que haveria todo interesse em produzir bom pão, e barato, e em quantidade, pois assim ganhar-se-ia muito dinheiro, e da preocupação na produção resultaria a fartura de pão para todos. Nascia a visão utilitarista, que acabaria por se tornar a única filosofia realmente existente no que se viria a chamar liberalismo. A visão e a crença de sistemas automáticos resultantes de milhões de decisões micro-económicas tornam-se ridículas num planeta que enfrenta o impacto dos gigantescos grupos transnacionais, as poderosas redes de comércio de armas, os monopólios dos mídia a nível mundial, a destruição acelerada do ambiente, a especulação financeira globalizada, o comércio ilegal de drogas, órgãos humanos e prostitutas infantis, e tantos outras manifestações de um processo económico sobre o qual perdemos o controle.
O capitalismo global realmente existente é uma coisa nova, e os conceitos na sua análise ainda cheiram a cueiros. Acreditar no poder mágico num processo complexo e diferenciado e a que abusivamente damos pelo nome de mercado, leva-nos a olhar de forma receosa e com nostalgia para o passado .
As mudanças foram rápidas em termos históricos, ou até vertiginosas, mas aconteceram de maneira progressiva, sem que para tal tenha existido um momento preciso de ruptura. Em consequência, fomos sendo agastados de certa forma nos nossos conceitos de justiça social, para cobrir uma realidade cada vez mais diferente e preocupante.
Os pequenos burgueses adquiriram uma forma mais ampla no conceito de exclusão social, evoluindo para um conceito mais geral de classes trabalhadoras e assim por diante. Chamar mercado a um sistema de poder articulado de cerca de meio milhar de empresas transnacionais, ou as transacções intra-empresariais a preços administrativos que hoje envolvem percentagem considerável do comércio a nível mundial, tornou-se insustentável, levando ao surgimento de curiosos remendos aos quais se convencionou atribuir o pomposo nome de Gestores de Mercado. Quando a criança cresce, pode-se baixar as bainhas das calças, mas chega uma altura, no entanto, em que se torna necessário trocar de calças e adquirir um número maior.
A nossa dificuldade prende-se também ao facto que nos objectivos de uma sociedade justa e solidária, continuam indispensáveis nas nossas motivações no quadro de uma ampla liberdade individual, e hesitamos em avançar para instrumentos novos de gestão social, quando os antigos, bem ou mal, ainda que não respondendo às nossas necessidades de renovação, constituem uma barricada razoável de resistência contra a crueldade económica que gradualmente se instala. Agarramo-nos às soluções simplificadoras de outros tempos, estatização para uns, mercado para outros, mais na linha da resistência e receios frente às transformações em curso, do que propriamente por acreditar no poder ilimitado destes instrumentos de gestão.
A resistência é natural: nenhuma pessoa normalmente dotada de ética e bom senso olha com tranquilidade para este mundo novo. A preocupação não se resume à esquerda. O empresário efectivamente produtivo, pode acreditar que defende incondicionalmente a liberdade de iniciativa, mas a cada empresa que fecha ou é adquirida por algum investidor institucional, provoca-lhe receios e deixa-o com mais dúvidas. E quando compara os seus lucros, que resultam de esforço e riscos reais, com as fortunas que oportunistas especuladores ganham com o dinheiro dos outros, inclusive com remuneração assegurada pelo governo a partir dos seus próprios impostos, começa a colocar em questão, intimamente, a própria lógica do sistema.
As decisões entre o poder do Estado e o privado, opções ideológicas que orientaram a polarização que caracterizou o século passado, começam gradualmente a surgir cada vez mais nas nossas cabeças como um enigma emocional, o qual requer urgentemente ser repensado na nossa visão de esquerda-direita.

(continua .......)

João Carlos Soares

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